Direito e Justiça

Opinião de Diamantino Bártolo
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1955

O ordenamento disciplinador da sociedade encontra- -se compilado em inúmeros documentos jurídicos que, por sua vez, obedecem a uma Lei Constitucional, na qual estão consagrados os deveres e os direitos fundamentais, organização política, económica, judicial, órgãos de soberania, divisão administrativa e territorial do país, entre outras disposições legais.

Neste conjunto de normas, a Autoridade e o Direito devem caminhar em perfeita consonância, na medida em que a legalidade e legitimidade daquela advém do Direito e da adesão popular. A eficácia dos preceitos jurídicos depende da intervenção da Autoridade, dentro dos condicionalismos legais impostos pela tradição, pelos usos e costumes, obviamente, desde que conformes à Lei geral.

A força do Direito reside na observância habitual, sem conflitos e com frequente utilização das normas que ele consagra, por parte da maioria dos cidadãos que a ele está subordinada. Contrariamente ao que muitos possam pensar, que veem no Direito uma consequência da violação e o respetivo castigo, ainda que este aspeto também possa caracterizar o Direito, todavia, não será, porventura, o mais importante, nem o seu objetivo essencial, até porque cabe aos órgãos com atribuições jurisdicionais a vigilância e aplicação das normas jurídicas.

Órgãos por vezes dotados de alto grau de especialização e complexidade, relativamente à fiscalização, interpretação, investigação e coerção., obviamente que são necessários à ordem e segurança dos cidadãos. Tais órgãos revestem um caráter policial e, nessa qualidade, nem sempre são aceites, compreendidos e obedecidos pela comunidade.

Não basta invocar que a Polícia, também ela, como Corporação e, bem assim, os seus elementos, individualmente considerados, estão sujeitos à mesma Lei que obriga os restantes cidadãos, para com esse argumento recusar obediência ou manifestar desrespeito para com a dignidade que lhe assiste, até porque, para muitas pessoas, a organização e comportamento da Polícia, poderá revestir-se de maior proximidade do que a dos próprios Tribunais, eventualmente, devido ao facto de os indivíduos entrarem muito mais facilmente em contacto com os agentes policiais, do que com os magistrados judiciais e funcionários a eles adstritos.

Do que fica mencionado, pode-se inferir a ideia segundo a qual: a Ordem Jurídica deve ser encarada como ordem prático-normativa e, como tal, existe para se cumprir, nem verdadeiramente existe senão enquanto se cumpre, na realidade social.

Aqui surge um outro aspeto que se prende com a atuação do seu normativo nessa realidade, distinguindo-se, então: os critérios de procedimento ou operatórios; e os órgãos de atuação que se substanciam no ato que há-de desempenhar-se dessa aplicação, no qual terá de ser definido o modo de proceder e um agente que realize tal ato, bem como os órgãos dotados de poderes adequados a esta atuação e então, desde logo, as instituições policiais, para a prevenção das ofensas, depois os tribunais, as penas criminais e as prisões, constituindo os órgãos de atuação.

Ora, se o Direito é uma consequência da sociedade organizada, a Justiça resulta da aplicação justa do Direito, nessa mesma sociedade, nesta intervindo a Autoridade como primeiro garante dos deveres e direitos dos cidadãos. A Justiça é a outra componente, tão necessária quanto dignificante, para a convivência intersubjetiva do homem.

Se se analisar em sentido absoluto, ela, a Justiça, é, segundo alguns, “atributo da divindade e expressa a infalível perfeição da vontade divina”, mas se colocada numa perspetiva ética, enquanto conduta humana, então a Justiça adquire vários significados como sejam: “a virtude total ou perfeição moral em geral”, “a virtude particular que leva a dar a cada um o que lhe pertence” ou ainda “não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”.

Ao nível da abordagem filosófica, a conceção de Justiça, como virtude universal, encontra o seu primeiro grande desenvolvimento em Platão, na sua obra “A República”, traduzindo, em síntese, a harmonia e hierarquia das partes no todo, o que levado à concreticidade da Polis, significa que cada uma das classes sociais deve cumprir a sua missão específica, sob o impulso da virtude correspondente.

Em S. Tomás, a Justiça é considerada como virtude geral, no sentido de ordenar ao Bem-comum, os atos das virtudes éticas, isto é: a Justiça é a virtude cardeal, que consiste na disposição da vontade de atribuir a cada um o seu direito, sendo o seu objeto, o direito de cada um.

A Justiça implica também o outro, e assim a alteridade integra a sua essência, o que postula, igualmente, a diversidade de sujeitos. A Justiça funda-se, afinal, na virtude da prudência, enquanto medida reguladora do querer e do agir, e se destina a traduzir na conduta, a verdade do real.

Ainda segundo S. Tomás: «A Lei que se afasta da Lei natural, não será Lei, mas corrupção desta, pelo que as leis injustas não vinculam em consciência, exceto se tais leis evitarem um mal maior de desordem social, sendo legítimo resistir e até desobedecer às leis injustas.».

Similarmente se procederia em relação a ordens ilegais, aliás, este princípio é defendido no século XIX em Portugal: «Não é somente um direito, mas um dever para cada cidadão, não obedecer a uma ordem ilegal sem se precaver a si mesmo e à sociedade com meios de reparação deste atentado.

Quem procedesse de outra maneira tornar-se-ia cúmplice da autoridade infiel.» (FERREIRA (1836:11).

Bibliografia

FERREIRA, Silvestre Pinheiro (1836). Declaração dos Direitos e Deveres do Homem e do Cidadão. Paris: Rey et Gravier,