DIREITOS HUMANOS NUMA DEMOCRACIA CULTURAL
São relativamente bem conhecidos os movimentos universais de defesa dos valores morais, ou de outros valores, no sentido moral, que a experiência, a sensibilidade e a razão vêm construindo, ao longo da história. São valores que sempre têm modelado os Movimentos e Estados Democráticos.
São bem conhecidas as lutas contra a exploração, contra a opressão, contra os privilégios no acesso aos bens da cultura, e do espírito, bem como contra todas as formas, antigas e modernas, de injustiças e discriminações sociais, contra o modo como a sociedade se organiza e se apresenta, por vezes, como um dado ou uma fatalidade inelutáveis e contra todas as formas de submissão, que retiram ao homem o seu papel de sujeito dominante.
Nenhum responsável político, detentor de cargos de decisão, pode, hoje, ignorar o aprofundamento da participação dos cidadãos nas decisões económicas, a nível público ou privado, bem como o acesso aos bens de cultura, como formas de dar conteúdo real à democracia política, porque o esforço de democratização económica e cultural constitui condição para o bom exercício dos direitos políticos e humanos, no âmbito de uma ordem social em que todos disponham de iguais oportunidades, e também para que os laços de solidariedade humana sejam otimamente desenvolvidos, sendo compreensível que os grupos lutem por uma sociedade mais justa, e pelo estabelecimento progressivo da efetiva igualdade de todos no acesso ao trabalho e à cultura.
A democracia política, na sua pureza original, poderá ser o sistema de governo compatível com a dignidade e a liberdade do homem. As democracias: económica, social e cultural, aperfeiçoam e completam a democracia política e esta implica, necessariamente: a) O primado dos direitos pessoais, civis e políticos dos cidadãos; b) A prática da soberania enquanto expressão da vontade da maioria no respeito pelos direitos fundamentais das minorias; c) Um modelo de organização do Estado que respeita o princípio da separação dos órgãos de soberania; d) A autonomia das autarquias regionais e locais; e) O estímulo à máxima participação efetiva dos cidadãos na gestão dos interesses públicos.
A cultura é o elemento constitutivo de todas as práticas sociais, porque enquanto proposta de valores, elaborada de imaginários sociais é, intrinsecamente, uma componente dominante e determinante de todos os aspetos da vida social, é o meio pelo qual um povo se determina e um processo de auto-libertação progressiva do homem. A democracia cultural, como expressão do pluralismo, não pode desligar-se das democracias política, económica e social, existe entre elas uma relação de interdependência profunda. A afirmação do Estado Democrático Constitucional passa pelo estímulo da atividade criadora de todos os cidadãos, tendo em consideração que a cultura não pode ser privilégio de qualquer grupo social ou monopólio do Estado.
É certo que o Estado de Direito Democrático Constitucional não se realiza, apenas, nas democracias e valores que abordamos, mas também noutros direitos que reputamos de fundamentais, entre eles, o da existência de uma justiça equitativa, assente em princípios fundamentais «1) Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais extenso sistema de liberdades básicas que seja compatível com um sistema de liberdades idêntico para as outras; 2) As desigualdades económicas e sociais devem ser distribuídas por forma a que simultaneamente: a) Se possa razoavelmente esperar que elas sejam em benefício de todos; b) Decorram de posições e funções às quais todos têm acesso. (…)» (RAWLS, 1993:68).
Ainda, seguimento do raciocínio do mesmo autor verifica-se que: «É essencial observar que é possível estabelecer um elenco das liberdades básicas. Entre elas contam-se, como particularmente importantes, a liberdade política (direito de votar e de ocupar uma função pública) e a liberdade de expressão e de reunião: a liberdade de consciência e de pensamento, as liberdades das pessoas que incluem a proibição de opressão psicológica e de agressão física (direito à integridade pessoal); o direito à propriedade privada e à protecção (…). O segundo princípio aplica-se, numa primeira abordagem à distribuição da riqueza e do rendimento, (…) devendo ser feita de modo a beneficiar todos.” (Ibid.:68).
O reconhecimento pelo exercício de direitos iminentemente humanos, será possível no quadro de uma cidadania democrática, a qual se exerce pela discussão entre os cidadãos, pela atribuição do poder e da legitimação do seu uso, «… é a forma política de distribuir o poder. Toda e qualquer razão extrínseca está excluída, o que conta é a discussão entre os cidadãos. A democracia encoraja a palavra, a persuasão, a habilidade retórica. De um ponto de vista ideal o cidadão que produzir os argumentos mais persuasivos, quer dizer, os argumentos que mais convençam o maior número de cidadãos, consegue o que pretende. Não pode, porém, usar a força nem fazer valer a sua posição, nem distribuir dinheiro; deve falar sobre as questões em causa.» (WALZER, 1999: 289)
Neste primeiro quarto de um novo século e início do terceiro milénio, verificamos que a complexidade do problema não nos deixa minimamente tranquilos, mesmo assistindo a atos públicos relativos à paz, à compreensão, à tolerância e ao perdão. O sentimento fundado no direito à diferença, incentiva os grupos, as comunidades e os povos de todo o mundo, à luta por um reconhecimento a que se julgam com direito.
Essa luta prolonga-se pelas gerações, também pelo tempo, e é por isso mesmo que os que detêm cargos públicos devem ser os primeiros a flexibilizar as suas posições, seja na empresa, seja no Governo da Nação, seja na família, na igreja ou na escola, aliás, parece-me que a partir de cinco pilares: Família – Escola – Trabalho – Religião – Estado, será possível, articuladamente, caminharmos no sentido da aceitação do interculturalismo dos povos de todo o mundo. Com tal orientação, o texto de Habermas, intitulado: “Lutas pelo Reconhecimento no Estado Democrático Constitucional”, dar-nos-á algumas pistas para reflexão.
No Estado Democrático, o instrumento fundamental, regulador dos grandes valores, princípios e orientações sobre direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, é a Constituição da República, no caso português; todavia, diz-nos Habermas que: «As constituições modernas devem a sua existência a um conceito encontrado na lei natural moderna de acordo com o qual todos os cidadãos formam voluntariamente uma comunidade legal de associados livres e iguais. A constituição oferece, precisamente os direitos que estes indivíduos devem garantir uns aos outros se querem ordenar a sua vida juntos recorrendo, legitimamente à lei. Este conceito pressupõe a noção de direitos (subjectivos) individuais e de pessoas individuais legais enquanto suportes dos direitos.» (in TAYLOR, 1993: 125)
Acontece: se por um lado, que a lei natural que consagra um conjunto de princípios superiores, justos e verdadeiros, com validade eterna e universal, e que modernamente constitui o corpo daquilo a que chamamos Direito Natural, cuja construção, possivelmente das mais antigas, teria sido cristã, no sentido em que o direito deriva de Deus, da vontade Divina; contudo, por outro lado, não podemos ignorar o direito na perspectiva individualista, do interesse das pessoas, dos sujeitos, portanto, subjetivo, isto é, direito subjetivo, que se traduz numa situação de vantagem, em que os outros estão impedidos de estorvarem ou obstaculizarem que o titular deste ou daquele direito subjetivo o goze.
Refere o autor do tema que venho analisando que: «Apenas no tribunal e no discurso legal os direitos são vindicados e defendidos como direitos individuais contestáveis pelos quais se pode mover uma acção judicial. A lei existente também pode ser interpretada de novas maneiras (…). Esta luta pela interpretação e satisfação das reivindicações historicamente não cumpridas é a luta pelos direitos legítimos pelos quais os actores colectivos estão mais uma vez envolvidos, combatendo uma falta de respeito pela sua dignidade. Nesta luta pelo reconhecimento as experiências colectivas da integridade violada estão articuladas (…). À primeira vista, no entanto, as reivindicações pelo reconhecimento das identidades culturais e pelos direitos iguais às formas culturais da vida são um assunto diferente. Feministas, minorias nas sociedades multiculturais, pessoas a lutar pela independência nacional, e regiões outrora colonizadas pedindo a igualdade das suas culturas a um nível internacional – são tudo lutas correntes por tais reivindicações. O reconhecimento das formas culturais da vida e das tradições que foram marginalizadas, quer num contexto de uma cultura maioritária, quer numa sociedade eurocêntrica global, não exige garantias de estatuto de sobrevivência?” (Ibid.:126-27).
À questão acabada de colocar Taylor distingue duas leituras de Estado Democrático Constitucional, para as quais Michael Walzer fornece os termos Liberalismo 1 e Liberalismo 2 (…) Taylor é favorável ao Liberalismo 2. Na interpretação Walzeriana, considera-se: «a) Liberalismo 1: Está comprometido, na maneira mais forte possível, com os direitos individuais e, quase como uma dedução disto, com um estado rigorosamente neutral, isto é, um estado sem projectos culturais ou religiosos ou sem qualquer tipo de objectivos colectivos além da liberdade pessoal e da segurança física, bem-estar e segurança dos seus cidadãos; b) Liberalismo 2: Permite um estado comprometido com a sobrevivência e florescimento de uma determinada nação, culturas e religiões – desde que os direitos básicos dos cidadãos que têm diferentes compromissos ou que não têm nenhum estejam protegidos.» (Ibid.:117).
Neste ponto do tema, Habermas dá a palavra a Amy Gutmann que faz questão em frisar o ponto irreversível, segundo o qual: «o reconhecimento público completo de cidadãos iguais pode exigir duas formas de respeito: primeiro, pelas identidades únicas de cada indivíduo independentemente do sexo, raça ou etnicidade, e, segundo, respeito pelas actividades práticas e maneira de ver o mundo que são particularmente valiosas para, ou associadas com os membros de grupos inferiores incluindo mulheres, ásio-americanas… (…) A exigência do direito visa não só a igualdade das condições de vida, mas também a protecção da integridade das tradições e formas de vida que os membros dos grupos que foram discriminados podem reconhecer-se a si próprios. Claro que normalmente o erro do reconhecimento cultural está ligado com uma grande discriminação social, e as duas podem reforçar-se uma à outra.» (in: TAYLOR, 1993:128).
Levanta-se aqui, segundo Taylor, uma questão, que é a que se prende com a proteção das identidades coletivas e o direito às liberdades individuais, ou seja, qual o reconhecimento que deve prevalecer ou superiorizar-se: o direito das maiorias, fundado no direito positivo ou o direito das minorias, com suporte no direito subjetivo? Taylor acrescenta a sua posição: «… o princípio dos direitos iguais tem que ser posto em prática através de dois tipos de política que vão ao encontro um do outro – uma política de consideração pelas diferentes culturas, por um lado, e uma política para universalizar os direitos individuais, por outro. Uma é suposta compensar o preço que a outra exige com o seu universalismo igualitário.» (Ibid.: 1993:129).
Entretanto são feitas algumas referências sobre a posição enunciada de Taylor: a) Oposição falsamente construída, usando os conceitos bom e justo, retirados da teoria da moral, segundo Habermas; b) Apelo para uma ordem legal, eticamente neutral, que asseguraria a todas as pessoas uma oportunidade igual de adotar a sua própria conceção do bom, defendem os liberais Rawls e Dworkin; c) Discussão sobre a neutralidade ética da lei e, deste modo, esperar que o Estado Constitucional, se necessário, avance ativamente conceções específicas sobre a vida boa, na ótica dos comunitários como Taylor e Walzer.
Para Habermas: por um lado, uma teoria dos direitos não é cega totalmente às diferenças culturais; e, por outro lado, em caso de conflito e na linha de Taylor, o tribunal decide a quem pertencem determinados direitos básicos e desta forma o princípio de respeito igual para todas as pessoas seria válido, apenas na forma de uma autonomia legalmente protegida.
Habermas considera que esta forma legalmente válida de direitos é paternalista, porque ignora metade do conceito de autonomia, ou seja, deixa de fora aqueles a quem a lei se dirige para poderem adquirir autonomia, de que resulta que: «na análise final as pessoas legais privadas não podem sequer alcançar o prazer das liberdades individuais iguais a não ser que elas próprias, ao exercerem conjuntamente a sua autonomia, enquanto cidadãos, cheguem a um claro entendimento sobre quais os interesses e critérios justificados e de que maneira as coisas serão tratadas desigualmente em qualquer caso particular. Assim que considerarmos seriamente esta ligação interna entre a democracia e o estado constitucional, torna-se claro que o sistema de direitos, não é cego em relação às condições sociais desiguais nem às diferenças culturais. (…). Uma teoria dos direitos correctamente entendida exige uma política de reconhecimento que proteja a integridade do indivíduo nos contextos de vida nos quais a sua identidade se forma.» (in: TAYLOR, 1993:131).
Bibliografia
RAWLS, John, (1993). Uma Teoria da Justiça, Tradução, Carlos Pinto Correia. Lisboa: Editorial Presença.
TAYLOR, Charles. (1998). Multiculturalismo, Tradução, Marta Machado. Lisboa: Instituto Piaget.
Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
Presidente HONORÁRIO do Núcleo Académico de Letras e Artes de Portugal
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