É preciso sair da ilha para…

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  • Há muito que não vos escrevo porque as últimas semanas foram de foco absoluto na ação climática. Mas chegou a hora de interromper a pausa e não é que, hoje em dia, é difícil não saber sobre o que escrever?

O problema do imediato é que provoca ansiedade. E, na era da informação, (cuja criação também passou a ser representativa do papel do cidadão-comum) é complicado gerir racional-emocionalmente a quantidade de acontecimentos que nos assoberbam.

E não. Não vos venho falar da pandemia: não vos venho pedir que mantenham o distanciamento social, que coloquem a máscara ou que questionem a veracidade de qualquer afirmação que Vos apareça no caminho. Para ser honesta, comparativamente com outros momentos cruciais da história, creio ser bastante simples a responsabilidade que cada um ocupa na linha de combate do repto que este (estranho) 2020 nos colocou nas mãos.

Eu quero mesmo falar do que se passa em território Francês: porque há uns dias, um professor mostrou uma série de caricaturas de Maomé e foi decapitado por extremistas islâmicos. Samuel Paty lecionava uma aula sobre cidadania e liberdade de expressão: e nada melhor que a arte para representar o belo que é ser-se livre. E diverso.

Recordo-me bem dos ataques ao Charlie Hebdo e da revolta que esse momento me causou: pelo evento em si. E porque as redes sociais podem ser uma chacina: e os alvos? Muçulmanos (terroristas de forma generalizada) e a própria liberdade de expressão (um bem adquirido sem qualquer tipo de fundamento). E o que parece ter ficado esquecido pelo caminho: a tolerância. A tolerância e a ponderação para travar o perigo de pagar extremismo com extremismo: travar os que desconhecem o que é sátira e como pode ser engraçado enfatizar de forma artística, pormenores peculiares da vida real. E os que não pretendem perceber que um ato individual não representa uma comunidade. Seria tão bom se em vez de apontarmos dedos, tivéssemos a capacidade de os usar para folhear mais livros e fontes de conhecimento: esforçamo-nos tanto mas esquecemo-nos de que a única coisa que não nos podem tirar é aquilo que procuramos conhecer. 

O ataque ao Charlie Hebdo foi há 5 anos. Samuel Paty partiu há uns dias. E neste intervalo de tempo, o grande problema continua a ser a ignorância e a inexperiência. E é por não se saber o que é o silêncio forçado, uma carta que não chega ao seu destino (não pelo seu peso mas sim pelo seu conteúdo), o que é ser colocado de lado porque não se é demasiado afortunado para tropeçar em gente pronta a sair da zona de conforto, para ver um pouco mais do que os seus horizontes alguma vez alcançaram.

Sou uma grande defensora de uma frase que – indubitavelmente – caracterizará aquilo que pretendo realçar em 2020: “não nos podemos esquecer de outras crises  (graves, urgentes) que estão a ocorrer simultaneamente à Covid-19.

Podemos falar da crise climática que não desacelerou, dos conflitos armados que não tiveram fim, e de uma série de eventos que estão agora – neste preciso momento -, a abalar outras partes do mundo. Mas peço-vos que, nesse canto onde se encontram, se calhar atrás de um ecrã: não colaborem com uma crise de valores sem precedentes.

Quebraram-nos as correntes afetivas mas não nos quebram o que sabemos ser bem nosso: a magia do humanismo. Sintonizem o Vosso lado mais humano e façam parte da solução (que esta equação já tem incógnitas de sobra). Desta forma, talvez possamos funcionar em harmonia com todos os outros sistemas e assegurar que não se continuam a basear num princípio de ação-reação. Ou, melhor, extremismo por extremismo. Às vezes é, realmente, necessário “sair da ilha para se ver a ilha.”

Inês Araújo