Passado. Presente. Futuro.

Opinião de Diamantino Bártolo
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Numa sociedade, ao que parece, cada vez mais conturbada, na qual as pessoas rapidamente esquecem ou ignoram o passado, quase se poderia afirmar que talvez seja “importante” refletir-se sobre o “Bem” e o “Mal”, porque ao longo da vida surgem tantos interesses, situações, pessoas, valores, sentimentos e emoções, umas muito boas, outras, aparentemente inócuas e, ainda, outras bastante más que, em bom rigor, é difícil estabelecer um equilíbrio de relacionamentos verdadeiros, solidários, amigáveis, leais, de total confiança, credibilidade e reciprocidade, mas, tudo isto faz parte da nossa vida.

É verdade que não existirão pessoas perfeitamente boas, nem radicalmente más, como também se pode concordar que, provavelmente, a maioria tende para o meio-termo: para uma certa “apatia” para as mais amplas relações interpessoais; indiferentes ao que existe à sua esquerda ou à sua direita; abaixo ou acima, dos conflitos entre pessoas, com as quais até desejamos manter relações de cordialidade, mesmo que entre tais pessoas existam sentimentos profundamente negativos, como o ódio, a vingança, a arrogância e os chamados “superdotados narizinhos empinados”. Há para todos os gostos.

O princípio salomónico, segundo o qual: “no meio é que está a virtude” isto é, a “verdade”, ou ainda a “decisão acertada”, pode não ser aplicável a todos os interesses, situações e pessoas. A gestão dos equilíbrios não é possível em todas as circunstâncias da vida, porque existem regras, princípios e valores, que ao longo dos séculos têm sido considerados fundamentais para, precisamente, haver comportamentos racionais, mas também distintivos do ser humano, como são os valores e os sentimentos, muitos dos quais deveriam constituir-se como autênticos dogmas, inquestionáveis, sem necessidade a qualquer recurso de prova técnico-científica.

Toda e qualquer pessoa, muito dificilmente, se pode considerar absoluta em qualquer domínio. É verdade que se aceitam afirmações, posições e comportamentos de grande rigidez, na defesa de determinados princípios e valores.

É plausível que se conceda o princípio da presunção de inocência, até prova inequívoca, indesmentível e confirmada, de que este ou aquele facto não foi, ou foi, praticado por uma determinada pessoa que, ainda assim, tem sempre o direito à sua própria defesa, para provar a sua inocência e defender o seu bom nome, bem como o dever de aceitar o contraditório, desde que tais direitos e deveres, ajudem na descoberta da verdade.

E se por um lado: o meio-termo que muitas vezes se procura, o consenso, o equilíbrio e a harmonia, que se equiparam, em certos contextos, à virtude, claramente é desejável; que, desde já, ninguém seja prejudicado nos seus valores, sentimentos, emoções; que as atitudes de consideração, de estima, de respeito e, se possível, e por que não, de amizade, fiquem sempre salvaguardadas, porque são, indubitavelmente, os princípios, os valores e os sentimentos, quando verdadeiros e desinteressados, livres de quaisquer intenções inconfessáveis, que conduzem, justamente, os comportamentos e as decisões de bom-senso.

Por outro lado, todas as pessoas têm um passado, no qual ficam, para todo o sempre, inscritas as boas e as más ações, os princípios, os valores, os sentimentos e as emoções, que se vão experienciando. Dizer-se que não nos devemos “agarrar” ao passado, que o importante é o futuro, poderá corresponder a uma “meia-verdade” porque: realmente, vive-se sempre um pouco o presente com o que foi conseguido no passado; e projeta-se o futuro, também, com algo do passado, que é analisado no presente, para se corrigir o que foi mal feito e aperfeiçoar o que de melhor se fez.

Ninguém, na plena posse das suas faculdades mentais, consegue ignorar o passado e, nesse sentido, temos de aprender a sermos humildes, a sermos gratos por tudo o que nos aconteceu de bom, mas também de mal, porque sempre tiramos ilações destas duas dimensões da vida humana: o bem e o mal.

Ignorar, por exemplo, um passado de privações, de carências, de sofrimento, da ajuda de amigos, só porque no presente estamos bem, e pensamos que no futuro já não vamos necessitar de mais ninguém, constitui um comportamento que, no mínimo, pode ser interpretado como de ingratidão, altivez, orgulho injustificado e, eventualmente, uma vaidade imerecida.

A vida dá muitas voltas, o mundo tem muitas “esquinas”, apesar da sua configuração ser praticamente redonda. Frequentemente, as pessoas recordam factos, situações e outras pessoas que conheceram, com quem até conviveram, há dezenas de anos, a milhares de quilómetros de distância, em circunstâncias inimagináveis, que esperavam, ou então desejavam, voltar a reencontrar, a conviver com elas, que até teriam sido amicíssimas e se ajudado mutuamente.

Com muita frequência, incompreensivelmente, o que por vezes se verifica, em inúmeras pessoas, é uma espécie de “amnésia”, em relação a quase tudo de bom que outras fizeram por elas, mas quando são aquelas pessoas a necessitar de ajuda, e nem sequer se aborda o aspeto material, mas apenas um auxílio moral, ético, solidário, leal e, principalmente a amizade das pessoas a quem nós já fizemos bem, elas viram-nos a cara, mudam de rua, evitam-nos e nem sequer atendem os nossos contactos.

Tais pessoas, num dado período das suas vidas, num presente que elas julgam nunca mais acabar, porque consideram que já não precisam mais de quem, no passado, sempre esteve ao lado delas (e em alguns casos pontuais, ainda continuam) tornaram-se insensíveis, incluindo em situações de doença, de quem sempre foi amigo delas, ficam indiferentes e, quantas vezes, revelam, até, grande impiedade, tratando as pessoas que tudo fizeram e deram por elas, como se fossem umas quaisquer desconhecidas, ou conhecidas de ocasião, entre biliões de outras pessoas ignoradas, ou seja, como se já não existissem.

Para aquelas pessoas, provavelmente, pensam elas próprias e agem em conformidade, não existe passado, quando muito, recordam esse passado se dele ainda subsistirem situações, interesses e pessoas que lhes possam vir a servir no presente, para se autoafirmarem no futuro, para alimentarem uma grande exposição de egocentrismos ou, ainda, sustentar a ingratidão, exercerem uma espécie de autonomia axiológica, manifestação de indiferença, e/ou, também, de superioridade, de sobranceria, de humilhação e sofrimento a quem, eventualmente, tantas vezes lhes fez bem e continua a querer bem.

Poder-se-á admitir, em tese, que quem assim pensa e age, está a renegar partes de um passado que tem na sua história existencial, que viveu, quantas vezes com várias dificuldades, que colheu apoios de pessoas de bem, que até conquistou amizades, sentimentos e emoções que, sincera, humilde, generosamente e de boa-fé, lhe foram concedidos.

Ninguém ignora que tais pensamentos e comportamentos magoam profundamente, provocam desgostos que, em situações-limite, levam ao desespero, à autodestruição gradual e, “in extremis” à morte de quem, precisamente, nesse passado, tanto bem quis e fez, e que agora recebe a indiferença, evasivas, sorrisos e palavras, aparentemente simpáticos, porém, quem sabe, de circunstância. É que as descortesias, desconsiderações e indiferenças doem: tanto mais, quanto mais partem de pessoas por quem nós tínhamos (nalguns casos ainda poderemos ter) uma incomensurável solidariedade, amizade e lealdade, com profunda e sincera estima e consideração.

O presente é um momento fugaz, lapso de tempo de ínfima duração, o resto é futuro, que está sempre umas frações de segundo à frente de todas as vidas que, em parte, até se ignora: como vai ser, o que vai acontecer, o que se vai conseguir, mas é legítimo e justo que se lute por um futuro cada vez melhor, em todas as dimensões da vida humana.

Um futuro que proporcione prosperidade, conforto e dignidade, uma hierarquia de valores próprios de uma sociedade civilizada, educada, humilde, onde a gratidão seja, esta sim, o consenso, o meio e justo termo, a verdade, a virtude, obviamente, envolvidas nos outros valores humanistas, como a solidariedade, a amizade, a lealdade, a boa-fé, a palavra de honra, a assunção dos compromissos, a guarda intransigente das intimidades, a retribuição de tudo quanto é bom: do bem, da generosidade, da amabilidade, da própria caridade e compaixão, estas no sentido mais carinhoso do que religioso.

Que ninguém se convença de que há futuro sem passado, que alguém cometa a leviandade de pensar que jamais vai precisar de quem no passado, foi seu amigo e que, apesar de persistir em atitudes de indiferença, escapatórias, aviltamentos, perfídias, não vai voltar a carecer de um apoio qualquer, num futuro mais ou menos próximo, exatamente das mesmas pessoas que já as ajudaram, mas que agora derrubam, desconsideram, ignoram, fogem, nem sequer respondem aos apelos de quem sempre esteve do seu lado.

Pessoa alguma evita o seu passado e poderá garantir que vai ter um futuro totalmente autónomo, e que essa absurda situação, lhe vai permitir continuar a desprezar quem, num passado mais ou menos remoto, eventualmente recente, deu todo o apoio para que a vida retomasse uma certa normalidade: pessoal, familiar, matrimonial e mesmo social.

Quantas pessoas, ainda num passado recente estavam muitíssimo bem na vida: com saúde, conforto, bens materiais, amigos (estes enquanto durou a então situação confortável), mas que hoje e, infelizmente, num futuro próximo, sempre um bocadinho à frente de um presente momentâneo, estão na maior miséria, que até os então “amigos de ocasião” os abandonam?

E quantos num passado, mais ou menos longínquo estavam muito mal na vida, sem saúde, sem trabalho, sem os tais amigos, marginalizados por alguns estratos da sociedade, até pela família, (excetuando os amigos verdadeiros, aqueles que dizemos do coração e para a vida) hoje, por mérito próprio: estudo, trabalho, poupança, com o apoio daqueles amigos sinceros, verdadeiros, também com um pouco de sorte e de saúde, estão bem na vida.

Agora, ao estarem bem na vida, provavelmente, até estarão a ajudar aqueles que, no passado, estavam bem, mas que no presente já não estão, e que humilharam, desprezaram e magoaram, precisamente os que agora têm condições para os auxiliar, com generosidade, sem ódios nem rancores, mas com a mesma amizade e “Amor-de-Amigo” de sempre. Quem pensa que não importa o passado, ou que ele não se repete, certamente de forma diferente, poderá sofrer as consequências de tais imprudências, e possíveis orgulhos desmedidos.

O Bem e o Mal existem. As virtudes e os defeitos não se podem ignorar. O amor e o ódio permanecem. O passado e o futuro são as duas fases importantes das nossas vidas porque o presente é um passado em revisão e um futuro em preparação. Mas o presente também é momento de reflexão retroativa, proativa e projetiva. O presente está em cada momento da nossa vida.

As injustiças existem e, independentemente das crenças e convicções de cada pessoa, infelizmente, há quem as retribua com manifesto prazer. É fundamental que se pratiquem a justiça e a gratidão, que tantas vezes se ignoram, quanto mais não seja por complexos e mesquinhos preconceitos de alegadas superioridades.

Sejamos justos, generosos, gratos e leais para com quem nos faz e quer bem, seja no passado, seja neste momento, seja no futuro, mas ainda e, em geral, para com todas as pessoas. É esta a regra salomónica, é este o bom-senso, são estas a virtude e a verdade.