Universalização da Cidadania

Opinião de Diamantino Bártolo
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A cidadania moderna não se confina (ou não deveria circunscrever-se) a um território, a uma Constituição, a uma cultura, história e etnia. A cidadania que aqui se defende, mais tarde ou mais cedo, deverá caminhar para uma maior abrangência e integração dos cidadãos, seja numa sociedade mais alargada, numa comunidade local, numa instituição, num grupo, qualquer que seja a sua atividade legalmente autorizada, localização geográfica, apenas se observando as leis específicas de cada país. Cidadania Solidária.

O mundo é de todos, e não é de ninguém. Cada um nasceu num local que não escolheu previamente, por isso, deveria poder optar por quaisquer outros espaços para viver, trabalhar e exercer os seus direitos e deveres de cidadão universal, sem restrições artificiais, impostas pelo homem.

O percurso que se propõe para a cidadania universal, pode iniciar-se com a adoção de uma cidadania “luso-brasileira”, que progrediria para a cidadania “lusófona”, atendendo a que a cidadania europeia já está em grande desenvolvimento (extensiva a vinte e sete países europeus, desde 01 de Julho de 2013, com a entrada da Croácia, considerando-se, entretanto, a saída do Reino Unido). Os países a solicitarem a adesão a este prodigioso Bloco Económico e Civilizacional, são muitos.

É nefasto para a humanidade, a manutenção de barreiras politico-ideológicas, económico-sociais, histórico-culturais e étnico-linguísticas, como igualmente tem sido prejudicial o enclausuramento dogmático, com medidas restritivas da livre circulação de pessoas, bens e capitais.

A prova de que o isolamento conduz à marginalização, e/ou à autoexclusão e à miséria, sob diversas formas, já se fez em tempos ditatoriais, cujos regimes acabariam por entrar em crise e soçobrar perante a força popular dos mais desfavorecidos apoiados, em muitas situações e países, pelas próprias Forças Armadas, cujos elementos são, na sua maioria, oriundos do povo anónimo.

A ideia de uma Cidadania Universal: não é acabar com a riqueza, bem pelo contrário, é preciso aumentar a fortuna e distribui-la equitativamente, conforme os méritos e responsabilidades de cada pessoa; a intenção não é eliminar as classes sociais mais poderosas, mas nivelar com mais justiça as existentes ou até, estabelecer-se uma classe do tipo “burguesia liberal democrática”, sensibilizada para os valores sociais, para a solidariedade, para a produção de bens materiais e imateriais, acessíveis a toda a população, para defesa intransigente da paz, da tolerância e do desenvolvimento a todos os níveis. Uma burguesia moderada, esclarecida e coesa nos valores essenciais da cidadania solidária, certamente que seria um obstáculo a quaisquer tentações hegemónicas, ditatoriais ou absolutistas, de grupos elitistas ávidos do poder pelo poder.

Uma burguesia que: não hostilize o capital nacional ou estrangeiro; que saiba conviver com instituições e empresas nacionais e multinacionais; uma burguesia do tipo interna, em oposição à burguesia capitalista, que perante esta funcionaria como um poder moderador, cooperante nos grandes desígnios humanos; aberta às iniciativas individuais e dos grupos económicos nacionais ou estrangeiros; mantendo os objetivos dos interesses legítimos de todos; tendo como pano de fundo o regime do Estado Direito Democrático, de plena cidadania que, paulatinamente, tem vindo a substituir os regimes ditatoriais, na última metade do século XX.

Nesse sentido: «… no contexto destes regimes ditatoriais, foi-se, progressivamente, destacando a convergência conjuntural e táctica dos interesses da burguesia interna de um lado, e da classe operária e das massas populares de outro, tendo por objectivo a substituição destes regimes por regimes democráticos.» (POULANTZAS, 1976:47).

O cidadão luso-brasileiro para o século XXI tem, à partida, um significativo avanço relativamente a cidadãos de países onde ainda vigoram regimes ditatoriais. O novo cidadão está integrado em países democráticos: Brasil e Portugal vivem desde há várias décadas em democracias plenas, o que facilita bastante o desempenho das novas tarefas que se lhes impõem.

Verificaram-se as vantagens da democracia, e o exercício da cidadania a ela associada, no desenvolvimento que tem ocorrido na União Europeia desde a sua fundação com o tratado de Roma em 1957, inicialmente constituída por apenas seis países e outra designação, consumando-se em 2004 um alargamento sem paralelo ao longo da sua História: vinte e cinco países e mais de quatrocentos e cinquenta milhões de habitantes com ideais comuns e valores unanimemente aceites. Hoje, 2022, já são vinte e sete os países, com cerca de quatrocentos e quarenta e sete milhões de cidadãos.

Naturalmente que noutros continentes, a associação de países tem vindo a ganhar corpo, a partir da comunhão de vários objetivos, desde logo económicos, como é o caso do Mercosul. Estão reunidas condições ideais para se dar um primeiro grande passo, a partir dos exemplos citados e das estruturas existentes na Comunidade de Países de Língua Portuguesa – CPLP e daqui avançar para a cidadania “luso-brasileira”, posteriormente para a cidadania “lusófona”, quando nos nove países da CPLP, a democracia plena for um facto irreversível porque, em alguns países lusófonos da África, ainda há vestígios, de regimes ditatoriais, suportados por partidos únicos ou, existindo mais partidos, estes ainda não estão convenientemente reconhecidos, estruturados e legalizados nos órgãos nacionais competentes.

A cidadania “luso-brasileira” antecederia assim a cidadania “lusófona”, constituiria como que o laboratório ideal para se constituir a união dos povos que falam a língua de Camões, que estão ligados por laços culturais, históricos e familiares, não se pretendendo, em circunstância alguma, qualquer tipo de discriminação negativa, em relação aos restantes oito países lusófonos, mas dar-lhes tempo para se prepararem para uma cidadania plena, solidária, todos sem quaisquer exceções.

Existem já alguns instrumentos legais, entre Portugal e o Brasil, internacionalmente reconhecidos, que permitiriam implementar e consolidar a cidadania “luso-brasileira”, dado verificar-se uma bem específica igualdade jurídica, designadamente ao nível dos deveres e direitos de brasileiros e portugueses consignados na Convenção de 7 de Setembro de 1970, vulgarmente conhecida como “Estatuto de Igualdades de Direitos e Deveres Políticos”: «Esta igualdade jurídica especial existente entre brasileiros e portugueses estabelece uma condição nova de vida entre os dois, propiciando uma dimensão nova ao cidadão, que se acresce àquela que lhe advém do seu status de nacional.» (ROCHA, 1999:454).

O primeiro contributo para a cidadania “lusófona” cabe, portanto, a este cidadão “luso-brasileiro”, que ao longo deste trabalho se tem vindo a idealizar. Um cidadão que jamais perca o rumo da democracia, da cidadania lusófona, e que se prepare com entusiasmo, convicção e firmeza para o futuro próximo. O cidadão que todos desejam ser, mas que para alguns se tornará mais difícil, se se deixarem comandar por certo tipo de “saudosismos”, de “nostalgias patrióticas”, de pseudo-supremacia colonialista e rácica.

O novo cidadão que já está sendo formado nos valores da democracia e da cidadania, a vários níveis dos sistemas educativos, e da formação profissional, tem o direito de beneficiar do apoio, da compreensão e da solidariedade dos mais experientes, daqueles que tiveram na sua vida de se confrontar com um regime ditatorial, e agora com o regime democrático, e que por isso mesmo, estão melhor preparados para ajudarem nesta tarefa supranacional da construção da cidadania e consolidação da democracia.

Na verdade, para este cidadão “luso-brasileiro”: «Quinhentos anos e a navegação que cortou a história conjunta de que nos fazemos fruto não exauriu a eterna busca da terra prometida da democracia bendita, que ainda não se fez ainda cumprir por completo. E esta busca não é apenas do português, multiplicado em todos nós, mas de todos os homens. (…) Cidadania não é a experiência de um único momento. Como a democracia, no berço da qual se dá a viver, não é obra completada. De resto, traz também nisto a cara e alma eternamente inacabadas do próprio homem.» (Ibid. Págs. 457-58-59).

O cidadão “luso-brasileiro” vai ter a nobre missão de honrar mais de quinhentos anos de história comum, a povos que se consideram irmãos, (os povos que constituem a CPLP) precisamente pelos laços históricos, culturais, linguísticos e afetivos, agora com uma nova postura democrática, de igual para igual, em permanente cooperação a todos os níveis e atividades.

Um cidadão modelar para o mundo:  que possa contribuir para uma humanidade pacífica, esclarecida, tolerante e solidária, pluri-multicultural; cumpridora dos deveres e beneficiária dos direitos universais. A cidadania “luso-brasileira” será o arranque para cidadania “lusófona” e, finalmente, para a cidadania “universal” onde a Mulher e o Homem sejam respeitados em toda a sua dignidade de pessoa humana. Será este o contributo do cidadão “luso-brasileiro” do século XXI, que subscreve esta meditação.

Bibliografia

POULANTZAS, Nicos, (1976). A Crise das Ditaduras: Portugal, Grécia e Espanha, Tradução de Lia Zatz, Rio de Janeiro: Paz e Terra.

ROCHA, Cármen Lúcia Antunes, (1999). Os Direitos de Cidadania no Brasil, no Mercosul e na comunidade de Língua Portuguesa, Coimbra, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1999, pág. 447.