VILA PRAIA DE ÂNCORA NÃO ESQUECE O ALMIRANTE RAMOS PEREIRA

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Os dados curriculares publicados e disponíveis em várias fontes referem que o Contra-almirante Ramos Pereira, filho do médico Dr. Luís Ramos Pereira, nasceu em Vila Praia de Âncora no dia 6 de abril de 1901 tendo-se casado com D. Maria da Graça Lopes de Mendonça, neta do poeta Henrique Lopes de Mendonça, autor do Hino Nacional.

Frequentou o Colégio Militar e, após dois anos de serviço no Exército, ingressou na Escola Naval, onde concluiu o curso de Marinha como primeiro classificado. Em fevereiro de 1924 foi promovido a Guarda-Marinha, efetuou vários embarques dos quais se destaca uma comissão no Extremo Oriente, entre 1930 e 1932, a bordo do cruzador “Adamastor”. 

Nessa comissão começou a revelar um grande interesse pelas radiocomunicações, tendo sido louvado pela sua ação técnica na direção da instalação elétrica e dos equipamentos rádio do navio.

Foi colocado na Direção do Serviço de Eletricidade e Comunicações em outubro de 1932 onde viria a passar cerca de 21 anos, apenas interrompidos por duas comissões de embarque como Imediato dos contratorpedeiros “Lima” e “Douro”, entre 1935 e 1936.

Durante esse longo período, desenvolveu um significativo trabalho no desenvolvimento das comunicações rádio, dirigindo a construção e experimentação de novos equipamentos (atividade em que se valeu da sua experiência de radioamador) e organizando cursos para oficiais, sargentos artífices e praças. 

Entre as várias publicações técnicas que elaborou, destaca-se um compêndio de radioeletricidade editado em 1952, que serviu de base de apoio a vários cursos. Foi também responsável pela reorganização e modernização, em equipamento e instalações, da rede de estações radionavais da Marinha.

Passando, sucessivamente, pelos cargos de Secretário, Subdiretor e Diretor, deixaria a Direcao do Serviço de Eletricidade e Comunicações em fevereiro de 1954, já como Capitão-de-Fragata, para exercer o comando do aviso de 2ª classe “João de Lisboa”, enviado em missão de soberania à Índia portuguesa, por ocasião das graves perturbações ali ocorridas naquele ano.

Regressado à Metrópole em 1956, ano em que foi promovido a Capitão-de-Mar-e-Guerra, passou pelo Estado-Maior Naval, antes de ser enviado a frequentar o Naval Command Course no United States Naval College.

Em junho de 1958 foi nomeado Subdiretor do Instituto Superior Naval de Guerra, ascendendo a Director, já no posto de Comodoro, no início de 1960. Empreende, então, profundas alterações na organização e nos curricula daquele Instituto, tendo sido responsável pela sua mudança para as instalações definitivas, na Rua da Junqueira. Promovido a Contra-Almirante em julho de 1960, viria a pedir a sua demissão na sequência de um discurso do Ministro da Marinha, aquando da abertura solene do ano letivo 1961-62, que considerou atentatório do seu brio profissional.

Passa à Reserva em abril de 1966, tendo, ainda, exercido as funções de Director do Museu da Marinha, entre 1968 e 1971. Em outubro de 1969 chega a ter alguns assomos de atividade política, candidatando-se a deputado por Viana do Castelo na lista da Oposição Democrática.

Nos últimos anos da sua vida desenvolveu uma intensa atividade intelectual, quer na vertente técnico-científica quer, principalmente, na vertente cultural. Foi um dos dez fundadores do Centro de Estudos de História Marítima, mais tarde designado por Centro de Estudos de Marinha, que daria, em 1978, origem à Academia de Marinha.

Entre os vários trabalhos que publicou, maioritariamente de cariz técnico, avulta, no campo da História, um estudo sobre a vida de Gago Coutinho, que publica em 1973. Também se debruçou sobre a figura de Fontoura da Costa, sendo ainda de mencionar o seu interesse pelo património arquitetónico da Marinha.

Faleceu em Lisboa, no Hospital da Marinha, na sequência de um carcinoma estomacal, no dia 16 de março de 1974.

Em 1982 foi, a título póstumo, agraciado pelo Presidente da República com a Comenda da Ordem da Liberdade. A sua memória foi ainda homenageada com a atribuição do seu nome a uma rua em Vila Praia de Âncora e à estação radionaval da Apúlia, hoje desativada.

Depois destas menções curriculares suprarreferidas com um enfoque especial na sua ligação com a Marinha de Guerra Portuguesa gostaria de sublinhar outros aspetos relacionados com a sua ligação umbilical a Vila Praia de Âncora e às suas gentes sublinhando que, o facto de durante muito tempo ter a residência principal em Lisboa e passar apenas os períodos de férias e licenças na sua terra natal, nunca esmoreceu o seu amor e carinho pela terra que o viu nascer.

Longe ou perto, estava sempre atento ao que se passava em Vila Praia de Âncora, informava-se sobre os seus anseios, dificuldades e aspirações, na esteira da ação do seu pai o Dr. Ramos Pereira que deixou uma marca indelével em Vila Praia de Âncora enquanto médico, político e filantropo a ele se devendo a elevação a Vila cujo centenário se comemora este ano, relacionando-se com muitas franjas da população, socialmente débeis, que viam nele um amigo e um porto de abrigo.

De referir que, na época, eram muito poucas as pessoas que tinham telefone e vinha muito longe a utilização de telemóveis e, por isso, a sua presença na sua residência em Vila Praia de Âncora, a “Casa do Monte como era conhecida na Rua que hoje tem o seu nome, era sinalizada com a bandeira nacional içada no mastro colocado na frontaria da sua casa.

Este era o sinal que era dado aos seus concidadãos de que podiam bater à porta e, invariavelmente, eram atendidos, para dele obterem uma palavra de conforto, buscarem soluções para problemas de trabalho tendo encaminhado muitos pescadores para a pesca do bacalhau, para dar um conselho sobre o serviço militar, importando lembrar que, nos tempos da guerra no ultramar e da ditadura, com a qual o Almirante Ramos Pereira não concordava, ajudava a tomar as melhores opções para evitar riscos maiores, tendo aconselha muitos jovens e famílias a optarem pela Marinha de Guerra ou pela Marinha Mercante e muitos deles fizeram esse caminho, com assinalável sucesso.

Se esta era a situação em Vila Praia de Âncora, na Rua Santana à Lapa em Lisboa, onde residia, a porta nunca era fechada a um amigo, particularmente aos ancorenses, que precisasse de ajuda pois os tempos eram difíceis e o Almirante Ramos Pereira mesmo não sendo apoiante do regime, tinha muita gente ligada às forças armadas e mesmo ao governo que lhe tinham muito respeito e alta consideração por ser uma pessoa séria, muito competente e integra. 

A sua preocupação com o aumento dos níveis culturais das pessoas era manifesta e por isso criou a Fundação Ramos Pereira, que depois passou a designar-se Fundação Vila Praia de Âncora, e no âmbito da sua atividade apoiou muitos jovens, investindo na sua preparação académica tendo muitos deles obtido licenciaturas em várias áreas do saber, mudando radicalmente as suas vidas.

À parte a Fundação sempre que tinha oportunidade incentivava os jovens a incrementarem cada vez mais os níveis habilitacionais e sempre fazia questão de se manter informado sobre o sucesso escolar e sobre as trajetórias de vida dos seus concidadãos.

Uma vez terminado o seu percurso no ativo, depois de passar à reserva, em 1969, depois do Salazar ter caído da cadeira e quando iniciou o regime supostamente mais aberto de Marcelo Caetano, o Almirante Ramos Pereira aceitou o desafio de enveredar pela política ativa tendo sido candidato a deputado pelo círculo de Viana do Castelo na lista da Oposição Democrática, mas os resultados eleitorais, como aconteceu em todo o país, foram falseados.

A notícia da morte do Almirante Ramos Pereira, constituiu por isso uma grande consternação e o seu funeral entrecruzou-se com a chamada intentona das Caldas que viria a ser a semente e um primeiro ensaio do que aconteceu no 25 de Abril. O cortejo fúnebre em Vila Praia de Âncora foi dos mais concorridos e comovidos por tudo quanto fez pelas suas gentes.

A atribuição da Ordem da Liberdade pelo Presidente da República Mário Soares, a título póstumo, veio fazer justiça a um percurso de vida cívica e política sem mácula e embora todos soubessem da sua discordância com os postulados da ditadura, nunca deixou de ser uma referência e um exemplo de patriota e de homem de bem.

Por isso, Vila Praia de Âncora, passados cinquenta anos da sua morte, não esquece nem pode esquecer o seu exemplo, o seu espírito humanista, a sua coerência e a absoluta verticalidade que sempre pautou a sua vida.

José Luis Presa