Uma experiência curiosa

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Talvez a minha virtude e o meu defeito em maior ou menor intensidade, seja a curiosidade. Mas é assim, pela curiosidade, que penetro o mundo, que passo a conhecer o mistério das coisas que por vezes me intrigam, que rasgo e desvendo a sua profundidade,  a sua cor e densidade. Isto relativamente às coisas tocáveis, mas também à natureza profunda dos sentimentos. Em tudo, mesmo correndo riscos de diversa ordem. Só mesmo a curiosidade nos pode levar ao conhecimento e à descoberta. Estudo, leio, aprecio, com a curiosidade de saber. E, o saber, liberta-nos da ignorância.

Naquele dia de muitos dias, encontrava-me no mar da maior ilha do mundo: a branca e gélida Gronelândia. Deste ponto, a norte do círculo polar Ártico, por entre o enevoado horizonte nascente as montanhas íngremes e aguçadas surgiam cobertas de gelo.

A bordo do lugre de quatro mastros, agora ancorado, todos esperávamos a ordem do capitão para arrear os dóris. Corria uma brisa ligeira e fria sobre o mar de baixa e esparsa ondulação. O navio quase não baloiçava naquelas águas cinzentas a quem o sol se negava a devolver a  cor do céu. Naquela altura já pensávamos que o atraso do capitão em mandar arrear, se devia talvez  à sua prudência perante a leitura do barómetro, se a pressão atmosférica se  mantinha ou baixava. Mantínhamos a expectativa. Mas, passado mais algum tempo, o capitão assoma à porta da ponte, leva a mão à boina e dirige aos seus homens as rituais palavras: – “ Arreia com Deus!”

E, os homens, já em movimento para as pilhas dos dóris, respondiam, a voz escapada pelas golas subidas das camisolas e casacos de oleado: – “Vamos com Deus! Iça à proa, iça à ré!”

Imediatamente, os ganchos dos teques prendiam-se nas alças de proa e de ré dos dóris e subiam um pouco acima da pilha para, em seguida, baixarem até à borda do navio. Aqui, os homens saltavam para os seus dóris, sucessivamente, até ao último dóri.

Na água, enquanto o vento e a corrente marítima arrastava popa adiante as pequenas e frágeis embarcações, o pescador armava os quêtes e as bancadas, arrumava a palamenta e tomava a decisão de remar ou marear de vela rumo ao seu palpite: ao largo do paralelo do navio fundeado uns e outros para sotavento afastando-se uns dos outros até ficarem dispersos na distância enevoada.

Agora era só solidão. A aragem fria, cortante, sussurrava aos ouvidos. Puxei o cesto das linhas para a proa e lancei à água o garampolim que imediatamente mergulhou e desapareceu na profundeza. Depois, foi o contínuo iscar os anzóis e largar de linhas para a água escura.

Enquanto largava, senti alguns puxões, o que me dava alegria e entusiasmo. O fiel amigo estava a gostar do isco. Era um bom sinal. Só queria que a corrente marítima não virasse de rumo enquanto largava o aparelho, pois se isso acontecesse o mais provável seria afastar-me do cordão ou formação que o peixe seguia em busca de alimento. E que voraz é o fiel amigo. As linhas ali em cima do cardume era um sucesso.

Depois de todo o aparelho largado no fundo do mar preso à âncora que o rodo ligava ao dóri, era dar o tempo estimado do fiel amigo se saciar e ficar preso nos anzóis, pachorrento, sem fazer esforço para se desprender. Que comportamentos estranhos os destes animais comilões insaciáveis, que nada fazem por se libertarem e quando chegam a bordo, os tontos quase nem estrebucham e ali ficam inertes uns em cima dos outros dentro dos quêtes do dóri. E tão devoradores e insaciáveis são, e ao mesmo tempo tão néscios, que se atiram ao chumbo da zagaia –  que tratei logo de lançar para fazer movimentos com os braços e manter a temperatura corporal – e ficam presos aos grandes anzóis que complementam aquele aparelho de pesca.

Mas desta vez ignoraram a minha zagaia e fiquei desconfiado. Não, ali onde terminei de largar o trol, não havia bacalhau. Todavia, os sinais das primeiras linhas lançadas, aqueles esticões, davam-me alguma esperança de fazer uma pescaria razoável.

                O tempo continuava frio e cinzento. Mas a ligeira brisa tinha acalmado. Olhava, ao longe, as montanhas da Gronelândia prendiam a minha atenção: os seus recortes no horizonte, a neve descendo pelas suas encostas e contrafortes. Depois, o mar, desenhando os contornos da costa que eu agora apreciava a cerca de vinte milhas de distância. Apesar desta distância, porque o céu num momento desanuviou um pouco emprestando maior claridade, embora mantendo o seu tom cinzento mas mais esparso e dissolvido, eu podia apreciar esta inóspita e desolada paisagem. Mas se o tempo estivesse claro, até afastado cinquenta milhas, eu veria as espetaculares montanhas da Gronelândia brancas como um vestido de noiva. É a luz translúcida do norte que nos faz ver a tão grande distância. Agora, ao mesmo tempo que apreciava a terra ao longe, experimentava o silêncio impressionante do norte na calma estanhada com que a tarde nos presenteava.

Mãos ao rodo, puxei a âncora e os meus olhos cravaram-se nas linhas e anzóis até onde podia ver. As primeiras linhas só traziam um ou outro sanapaio. Bem, continuava com a esperança que mais adiante teria mais consolação. Com efeito só a outra metade do trol me animava com mais uns peixitos. A última, ou seja, a primeira que larguei, foi a que mais me consolou. Porém, não deu para carregar o dóri, mas uma popa ajeitada acima das serretas. Lamentei-me um pouco, pois com aquela calma podia atestar o dóri de bacalhau. Mas o peixe é assim. Deambula por aqui e por ali, junta-se num local ou dispersa-se e não lhe adivinhamos o jeito, se se deixa arrastar pelas correntes ou se deixa estar num habitat alguns dias. Sabemos, sim, que ele só pára onde há comida para encher os seus buchos insaciáveis. Quando ficam a abarrotar vomitam e tornam novamente a encher os buchos e assim sem parar. Nunca estão saciados. O bacalhau!…

Bem, o navio havia suspendido e feito a emposta para sotavento dos dóris. Ancorou de novo a uma distância de mim cerca de três milhas. Sem vento para a vela tinha de vencer a distância à força dos remos. A água corria a meu desfavor, um contra- tempo. Não valia a pena lamentar. Aquilo era para mim, força. Passei por uns pedaços de gelo flutuante, fragmentos de um yceberg que se desfez algures e agora seguiam arrastados pela corrente.

A dado momento dei comigo a pensar na tragédia do “Titanic”. Como foi possível uma  bela e majestosa montanha de gelo afundar um gigante dos mares? Seria assim tão duro, mais que o ferro, capaz de o cortar como se fosse um diamante bem afiado?

A minha curiosidade despertou. “Tenho aqui uma oportunidade de o comprovar por mim mesmo”. “ Não há melhor saber que o empírico” pensei e logo decidi pôr em prática. Remei com toda a força contra uma pequena ilhota de gelo. O impacto foi como bater numa rocha tremendamente sólida e inamovível. Foi essa a sensação. A minha sorte é que o dóri bateu e deslizou pela ladeira do bloco de gelo. Recolhi os remos e reparei que o dóri estava a meter água na proa. Saltei para a ilhota a tempo de apanhar uma peça de madeira do bico da proa que se havia desprendido com o impacto. Essa peça fazia a consolidação das tábuas dos dois bordos do dóri, o seu fecho no ponto da convergência. Puxei o dóri mais acima da rampa de gelo e tentei repregar com a ajuda do garampolim.

Quando terminei a tarefa, empurrei o dóri e saltei. Verifiquei que, embora menos, a água continuava a entrar. Nesta altura estava a cerca de uma milha náutica do navio, pelos meus cálculos. Comecei a remar novamente, parando de dez em dez minutos para escoar a água, até chegar ao navio.

Fiquei a conhecer pela experiência a dureza de um bloco de gelo. Uma satisfação, descontando o susto quando vi o dóri a meter água como uma fonte e a incerteza de dar vazão ao seu escoamento. Se não conseguisse afundava-me irremediavelmente sem ninguém próximo que me socorresse.

Cheguei ao navio e descarreguei. Içaram-me o dóri para bordo e pedi pregos e estopa  para repregar a peça que se havia partido em duas partes, tendo ficado uma pequena parte presa e a maior solta, a  tal que ainda fui a tempo de recuperar pois logo a corrente a levava.

Aprendi a lição e tomei consciência da consistência e dureza de uma ilha de gelo. Quando ao leme do navio a navegar através de campos de gelo disperso ou a rondar ycebergs redobrava de atenção com plena consciência do risco. E como a curiosidade desta vez não me foi fatal, fiquei com o gozo do saber que essa experiência me proporcionou.

Fotos: cortesia MMI e Google

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