Defensor da Autodeterminação do Brasil

Opinião de Diamantino Bártolo
0
413

Constitui um desafio estimulante, decorridos mais de cento e setenta e sete anos, após a sua morte, estabelecer a ligação do pensamento político-filosófico de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), com a importância dos valores da Cidadania e dos Direitos Humanos na época contemporânea: trata-se de um tema que, iniciando-se em finais do século XVIII, atravessa os séculos XIX e XX, e se mantém pertinente no atual século XXI.

Verifica-se que, não sendo um tema novo, continua a preocupar os responsáveis mundiais, que estão sensibilizados para cooperar com as organizações, e com a sociedade solidária e livre, além de haver preocupação em integrar este tema no domínio da Educação e Formação para a Cidadania Democrática, o que já constitui um assinalável avanço para a formação deste novo cidadão.

No que hoje se denomina “Direitos de Primeira Geração”, como a liberdade, nos seus vários aspetos (circulação, pensamento, consciência, expressão), e a propriedade (principalmente a privada, móvel e/ou imóvel), já Pinheiro Ferreira, há quase dois séculos, os invocava (sem os incluir nesta ou naquela geração), não só nas suas principais obras: “Manual do Cidadão em um Governo Representativo” (1834) e “Declaração dos Direitos e Deveres do Homem e do Cidadão” (1836) como também na sua praxis.

Relativamente aos direitos dos brasileiros, dirigindo uma exposição ao Congresso Português sobre o espírito dos povos do Brasil, principalmente do Rio de Janeiro, Silvestre Ferreira apercebeu-se do problema que os inquietava: «O descontentamento do Rio de Janeiro consiste nos clamores do sem número de empregados que de repente se acham esbulhados não só da influência e dignidade de que se achavam de posse, mas até de todo o meio de proverem à sua indispensável subsistência.» (NEVES, 1995:305).

A estadia de Pinheiro Ferreira no Rio de Janeiro, durante cerca de onze anos, as múltiplas funções e cargos que exerceu, a que se junta toda a sua experiência passada, bem como o regresso não desejado a Portugal, e a retirada em 1826 para Paris, muito terão contribuído para acentuar a sua sensibilidade aos direitos dos brasileiros e, genericamente, aos direitos humanos, na medida em que teve, de facto, a possibilidade de presenciar e viver verdadeiras e inaceitáveis injustiças, levando-o a escrever as obras a que já se aludiu.

Enquanto individualidade pública, detentora de cargos governativos, diplomáticos ou docentes, Pinheiro Ferreira não elaborou qualquer programa objetivo de governação, com deliberada e imediata incidência no tema que aqui se desenvolve; todavia, encontram-se dispersos alguns tópicos pronunciadores do que virão a ser as suas obras de 1834 e 1836, cujos princípios e valores suportam o seu sistema político, assente numa monarquia constitucional representativa, consagrando direitos fundamentais naturais: segurança pessoal, liberdade individual e propriedade real. Muito embora defendesse a representação censitária (comum no seu tempo), a dimensão social das instituições constitui o núcleo essencial do seu sistema político. (cf. SILVA, 1978:102).

E se é verdade que, na época, não se abordava a problemática da Cidadania e dos Direitos Humanos, no contexto internacional, não é menos verídico que, a partir da civilização ocidental, já então da europeia, muitos foram os paladinos dos Direitos Naturais do Homem, concebendo, inclusive, verdadeiros Estados sociais utópicos, sendo fértil em tais desenvolvimentos os séculos XVIII e XIX. Neste particular, é justo que se diga que o luso-brasileiro, vivendo intensamente esta época conturbada, não se deixou influenciar, negativamente, pelos utopistas do seu tempo.

 Assumiu posições e atitudes moderadas, que defendeu com grande realismo e sentido de Estado, sem abdicar de direitos fundamentais. Aliás, no prólogo ao projeto de Código Geral, elaborado em 4 de Julho de 1834, em Paris, revela essa moderação quando, agradecendo a colaboração do seu amigo Filipe Ferreira de Araújo Castro, escreve o seguinte: «oxalá que pudéssemos ter a fortuna de dever tributar outro tanto a aqueles dos nossos ilustres compatriotas de cujas luzes esperamos se dignem de coadjuvar-nos com a sua cooperação e conselho para que este trabalho consiga o seu último fim de fundar na nossa pátria o império da lei comum, da justiça e da liberdade, sobre as ruínas do poder absoluto, do privilégio e da anarquia.» (FERREIRA, 1834c: XIJ-Prólogo).

São inúmeros os exemplos que se poderiam colher nos escritos de Pinheiro Ferreira, no que à Cidadania e aos Direitos Humanos respeitam. Deve-se assinalar aqui a sua especial preocupação pelo exercício da justiça e, dentro desta, pelos direitos dos detidos e pela sorte dos condenados.

Efetivamente, quando foi necessário interceder por eles, junto do monarca, não hesitou em fazê-lo, conforme se conclui da leitura de uma sua carta a D. João VI, na qual pede a sua demissão: «…resignei-me na determinação que sua Majestade me manifestava de me não conceder a prometida demissão; mas exigi a promessa de Sua Majestade consentir em que eu começasse por aliviar a sorte dos mencionados presos, permitindo-lhes comunicarem-se com as suas famílias e passados alguns dias insinuar-lhes que poderiam escolher o lugar para onde se houvessem de retirar…» (Idem:1888:265).

No domínio da autodeterminação dos povos, Pinheiro Ferreira foi um percursor antecipado, como mais tarde será adotado por outras potências bem mais influentes na cena internacional do que Portugal porque, muito embora fiel à monarquia Joanina, era contrário ao absolutismo e, considerando a hipótese de uma monarquia dual para Portugal e para o Brasil, nunca perdeu de vista os direitos que deveriam assistir aos povos.

Escreveria então: «O Governo Português terá a glória de haver sido o primeiro que proclama e põe em prática para com as demais nações princípios de direito das gentes conformes aos do direito público, que acaba de adoptar e que fazem a base do regime de todos os governos representativos. Não tardará que o nosso exemplo seja seguido pelos Estados Unidos da América Setentrional e mesmo pelo Governo da Grã-Bretanha. Mas não teremos a glória de havermos prevenido sem que por grande antecipação se nos possa exprobrar que nos tenham acelerado.» (Ibid.:297).       

Não se infira desta citação que Pinheiro Ferreira defendia a autodeterminação absoluta dos povos. Na verdade, para ele a separação do Brasil relativamente a Portugal não se colocava como uma necessidade, nem como um benefício para os brasileiros. Preconizava, sim, uma solução de monarquia dual, embora, mais tarde, concretamente em 1841, tivesse escrito a D. Pedro II sugerindo a divisão do Brasil em cinco reinos.

Bibliografia

FERREIRA, Silvestre Pinheiro (1834a) Manual do Cidadão em um Governo Representativo. Vol. I, Tomo I, Introdução António Paim (1998b) Brasília: Senado Federal.

FERREIRA, Silvestre Pinheiro (1834b) Manual do Cidadão em um Governo Representativo. Vol. I, Tomo II, Introdução António Paim (1998b) Brasília: Senado Federal.

FERREIRA, Silvestre Pinheiro (1834c) Manual do Cidadão em um Governo Representativo. Vol. II, Tomo III, Introdução António Paim (1998b) Brasília: Senado Federal.

FERREIRA, Silvestre Pinheiro (1836) Declaração dos Direitos e Deveres do Homem e do Cidadão. Paris: Rey et Gravier,

NEVES, Lúcia Maria Basto P., (1995). “O Império Luso-brasileiro Redefinido: O Debate Político da Independência (1820-1822) ”, in: Revista do IHGB-Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 156, (387), Rio de Janeiro: abr./jun., pp.297-307.

SILVA, Nady Moreira Domingues, (1978). O Sistema Filosófico de Silvestre Pinheiro Ferreira. Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro/RJ: PUC. Pp. 65-66